A Baleia Zen

05/02/2024

Ao longo da história, a baleia representou um ser mitológico, um monstro marinho, um recurso economicamente útil e, agora, configura um património dos oceanos, um valor natural universal e um símbolo cultural identitário e dominante. Na verdade, ela sempre ostentou um corpo físico, enquanto organismo biológico, mas também foi assumindo um corpo social, baseado nas diferentes formas de interação com os humanos. E, assim, se funde, produz e reproduz a natureza-cultura da “baleia maravilha”!


Embora já longe do tempo da baleação insular, cetáceos e açorianos continuam a desencadear interações sociais entre si, em múltiplos contextos culturais, com objetivos económicos, científicos, patrimoniais, recreativos e artísticos. É precisamente neste plano que o Festival Pico Zen tem integrado, no seu programa anual, a observação de cetáceos e a visita ao património da baleia, de acordo com os valores da organização: “queremos que a essência se mantenha, promovendo a ecologia, a sustentabilidade, o vegetarianismo, as práticas holísticas, realçando o poder natural da ilha e proporcionar uma experiência única e inesquecível a quem venha ter connosco neste festival”. No Pico Zen 2023 (27 a 30 de abril), a “reinvenção cultural da baleia” ocorreu durante o primeiro dia da edição, reunindo participantes no Museu da Indústria Baleeira (1994-), em São Roque do Pico, aquele que é o primeiro museu industrial público dos Açores, resultante de um processo de reconversão da fábrica das Armações Baleeiras Reunidas (1942-1984). Esta visita ao museu realizou-se após a experiência de “whale watching”, confrontando diferentes espaços antropológicos e formas de perceção, representação, expressão e comunicação muito distintas e até contraditórias, relacionadas com a vida e a morte das baleias. Em termos objetivos, parece-me que isto traduz bem a riqueza e o percurso da cultura baleeira açoriana, envolvendo os cetáceos, os homens, a indústria, o património e a economia azul. 

Naturalmente que o discurso na fábrica-museu, no armazém dos botes baleeiros e no espaço das lanchas de reboque (clube naval) recorreu ao conhecimento das ciências naturais e das ciências sociais, mas ali a atenção centrou-se nos objetos, até porque as baleias permanecem no mar e, em terra, restam apenas alguns antigos baleeiros. Portanto, através dos objetos, “descobriram-se” baleias, instrumentos, espaços e territórios, atores, energias, relações de produção e distribuição, processos técnicos e produtos. Tudo cheira a cachalotes e homens!

 

Sublinho, no entanto, que este diálogo não traduz a narrativa institucionalizada, ideo-demagógica e inserida no processo de celebração e de mitificação dos pescadores-baleeiros, transformando-os numa entidade autonomizada a quem se presta homenagem. Com isto, a “baleia maravilha” desapareceu, a “caça” assumiu uma representação belicosa e os trabalhadores fabris foram subalternizados, assim como os empresários que criaram as organizações, onde tudo existia. A atividade do Festival no museu permitiu-nos, assim, o resgate de uma “Baleia Zen”, fazendo justiça à sua visão: “a nossa visão está em proporcionar um novo olhar sobre o mundo, sobre a vida e sobre si mesmo. Não há melhor retorno do que o investimento em nós mesmos”. Parabéns, Pico Zen!

Notas:
“Baleia maravilha”: Expressão de Brito, Vieira e Freitas (2019).
Sobre o “corpo duplo” da baleia, ver Martins (2022).

 

 

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José Carlos Garcia

Escritor e Antropólogo